Dune

 


Duna – Ficha técnica:
Direção: Denis Villeneuve
Roteiro: Denis Villeneuve, Jon Spaihts, Eric Roth
Nacionalidade e Lançamento: Estados Unidos, 22 de Outubro de 2021.

    DUNE, o filme lançado em outubro de 2021 realizado pelas mãos do canadiano Denis Villeneuve não pode ser esmiuçado sem se  fazer o devido enquadramento. Tem por base a obra de Frank Herbert escrita em 1965, que serviu de inspiração para uma primeira versão cinematográfica em 1984, realizada por David Lynch, recheada de estrelas mas que teve uma tímida recepção nos EUA (mais bem aceite na Europa e Japão) As expetativas criadas pelo livro não previam tal desfecho Contudo, não é de estranhar, pois o  escritor e jornalista norte-americano criou em 1965 um livro com mais de 700 páginas que muitos consideram a quinta essência da literatura de ficção científica, conduzindo o leitor pelo planeta Arrakis mais conhecido por Duna, numa viagem que se inspira nas relações feudais características na Idade Média misturadas com uma perspectiva futurista. Esta combinação que promove Herbert só é possível pelo universo detalhado que criou em redor da história, descrevendo pormenorizadamente cenários, personagens e uma realidade impossível de recriar para além da imaginação tão bem alimentada pela astúcia de Herbert. Este é hábil a criar uma Terminologia do Imperium (Glossário) notas cartográficas com indicações de um mapa possível de explorar e outras minuciosidades que transportam o leitor para o universo "quase real" de Dune.  Por esta razão,  é comparado frequentemente a J.R. Tolkien, outro mestre  na criação de narrativas ficcionadas baseadas num "universo" que parece ter sido visitado pelo escritor. Herbert criou uma obra de culto e tornou Dune obrigatório para os fãs de ficção científica. Não é irrelevante pensar que a obra foi escrita em 1965 e que os cenários descritos por Herbert servem de inspiração para muito do que se segue. Para quem segue a série Star Wars é indissociável pensar em Tatooine e os seus monstros da areia sem ter Dune como referência. 



Duna (1984) realizado por David Lynch com  Kyle MacLachlan, Virginia Madsen, Francesca Annis, Leonardo Cimino, Brad Dourif, Jose Ferrer, Linda Hunt, sting, Dean Stockwell, Patrick Stewart, Freddie Jones

    Este é o ponto de partida para uma adaptação cinematográfica que, como já referi, não correspondeu às expectativas em 1984 (na altura era considerada  por muitos como uma história impossível de filmar -  unfilmable) e agora,  com uma versão em 2021, que, como em todas as adaptações de livros considerados épicos, criou um misto de expectativas e receios.  Denis Villeneuve tinha portanto um desafio hercúleo: transportar o universo de Herbert para um filme (na verdade são dois, já que a sequela será apresentada em 2023). E a dificuldade passava exactamente por encaixar uma narrativa densa num universo super detalhado que os mais acérrimos fãs queriam ver religiosamente representados na tela. Aliado a tudo isto, Dune tornou-se comercial pretendendo  ser apreciado por aqueles que conheciam a história e aqueles que iam entrar pela primeira vez no mundo criado por Herbert...sem desiludir. A verdade é que a produção teve um orçamento 165 milhões de dólares e esperava-se, como é óbvio, que o retorno fosse correspondente. Mas vamos à história. 

Dune (2021) realizado por Denis Villeneuve com Timothée Chalamet, Rebecca Ferguson, Oscar Isaac, Jason Momoa, Josh Brolin, Stellan Skarsgård, Zendaya, Dave Bautista, Stephen McKinley Henderson, Sharon Duncan-Brewster, Chang Chen.

    Paul Atreides é um jovem de 15 anos, filho do Duque Leto Atraides (Oscar Isaac)  da Casa Atreides. Paul, interpretado por Timothée Chalamet que inicia uma viagem (forçada)  até ao planeta Arrakis, o planeta mais perigoso do universo, que praticamente não possui água (sendo a moeda de troca de muitos negócios) é possuidor da maior riqueza do universo - a especiaria- a principal fonte de energia de toda a galáxia. A família de Paul, o  Duque Leto Atreides e Lady Jessica sabem que a responsabilidade de governar e organizar a extracção da especiaria é apenas uma armadilha política, com o objectivo de a destruir. A personagem de Paul desenvolve-se ao longo da narrativa, destacando a sua maturidade e antevendo algo grandioso. Sonhos premonitórios deixam antever o papel de messias que o jovem pode vir a desempenhar mas também algo sombrio. Denis Villeneuve, soube explorar os cenários e as personagens, deixando muito por dizer mas pouco por contar. Quero com isto dizer que muita das minúcias detalhadas por Herbert são apresentadas de forma subliminar, dando espaço e pistas suficientes ao espectador para procurar esses entendimentos. A perícia de Villeneuve passa exactamente pela subtileza com que mantém os silêncios e os ambientes épicos sem tornar chatos e descritivos, momentos chave do filme.  Os cenários variam entre a escuridão dos espaços fechados, geometricamente delineados e a grandiosidade e simplicidade das paisagens amplas do deserto em que se desenvolve a acção. Na "galáxia" criada por Herbert situada aproximadamente 26 000 anos após a actualidade, não existem computadores. Todas as criaturas os eliminaram com receio que pudessem vir a ser controlados por eles. Não parece assim tão original em 2022 mas em 1965, quando a obra foi escrita, esta realidade parece quase profética. Em substituição aos computadores,  homens treinados (mentat) para explorar as possibilidades matemáticas são a solução. Uma solução que recentra o ser humano como elemento fundamental no universo. 



 A obra de Herbert é reconhecida pelo cariz ecológico e pro-ambientalista mas também por ser um dos primeiros livros de ficção científica a explorar conceitos relacionados com psicologia, história, filosofia e religião . Esta multidisciplinariedade  podia enredar Villeneuve a criar um filme demasiado complexo para o espectador que espera, apenas e só, puro entretenimento. Villeneuve não caiu no erro de ir atrás do livro nem de criar algo tão comercial que desvirtuasse muito dos significados da obra. O sucesso passou pelo equilíbrio encontrado entre essas duas fronteiras e o extraordinário trabalho técnico desenvolvido na banda sonora e fotografia. Dune é épico ao estilo de Villeneuve mas sem ser pretensioso. Ainda que em categorias mais técnicas, o filme foi galardoado  em várias: vencendo Melhor Som, Melhor Banda Sonora Original, Melhor Montagem e Melhor Direção de Arte, Melhor Fotografia e Melhores Efeitos Especiais. No total, seis das dez categorias para que estava nomeado. 



    O filme, ainda que não sendo consensual, conseguiu abrir finalmente o portal para o universo de Herbert e tendo consciência da grandiosidade dessa responsabilidade, este é o melhor elogio que se pode fazer. 





Exposição ONE - O Mar Como Nunca o Sentiu

 


        ONE é surpreendente. 


    De uma forma bastante redutora, poderíamos dizer que se trata da exibição de um filme  sobre os oceanos numa tela de cinema. Contudo, ONE é tudo menos uma mera exibição de uma trivial película sobre os oceanos. ONE é um desafio aos sentidos, uma experiência imersiva que nos transporta para o universo intimista que a autora procura recriar, tendo como tema o Homem e os oceanos. ONE é poesia em imagens. Mas vamos por partes. 

     Maya Almeida Araújo nasceu em Lisboa mas vive em Londres. É licenciada em Biologia pelo Imperial College London e tem mestrado em fotografia. Considera-se uma artista visual multidisciplinar, especialista em criar experiências imersivas através da utilização de tecnologia de última geração. Pela sua ligação aos Oceanos, foi desafiada a criar uma experiência visual através de um vídeo gravado durante 8 meses exclusivamente em território português (Portugal Continental, Madeira e Açores).  Onze equipas de filmagens esmiuçaram o Homem e a sua ligação aos Oceanos nas suas mais variadas actividades. Assim nasceu ONE.  Apesar da exposição pretender dar ênfase à conexão magnética entre os Homens os oceanos, não é clara uma linha narrativa evidente. Em alternativa, Maya procura através da beleza das suas imagens e sons, criar uma ambiência  que transporte o visitante de forma imediata para um mergulho sensorial, extraindo das emoções que cria,  uma ligação que promove a cumplicidade com o que se observa. É através dessa cumplicidade que Maya apresenta uma mensagem quase subliminar que procura passar ao observador - a conservação dos oceanos.



     Ao entrarmos na exposição, o primeiro impacto é um corredor escuro ondulado que fecha a porta da realidade e nos abre outras janelas. A palavra "janelas" faz todo o sentido porque a autora, em vez de optar por exibir o filme num formato de tela de cinema, optou por compartimentar essa mesma exibição em várias telas, separadas por um pequeno espaço em preto. A ideia não surge por limitações técnicas mas sim com o propósito de criar a sensação que o visitante observa através de janelas o que o rodeia. Um corredor largo separa duas paredes. A mesma projecção é feita em ambos os lados. As dimensões da projecção, quer em largura, quer em altura, são impressionantes. Sentimo-nos pequenos, como se entrássemos numa pequena embarcação subaquática no meio do vasto oceano. Ao redor das telas tudo é escuro, afinando os sentidos para o impacto que as cores vibrantes e as imagens super detalhadas nos fazem experienciar. Não é para menos. A projecção em 12K transforma cada tela numa perspectiva única, cheia de detalhe. Para tal foram utilizadas câmaras de última geração e uma pós-produção inovadora que realça o movimento de uma forma única. Para além disso, a preocupação em criar um ambiente sonoro altamente amplificado, desenvolvido e minuciosamente distribuído pelo espaço com o objectivo de transportar o visitante para dentro das imagens, são os ingredientes para que, rapidamente, quem assiste à exposição,  perceba que está a observar poesia através de imagens e sons. 




    ONE, não é um documentário científico nem obedece a uma receita absorvida de outras narrativas de sucesso. ONE é tão simples quanto bela. Desarma pela beleza dos pormenores captados com a maior das sensibilidades. Não temos que pensar. Podemos fechar os olhos e sentir o som grave a embater no peito, como uma onda dos Oceanos que são retratados. Sentados no meio da sala , tornamo-nos "esponjas" e absorvemos cada segundo. Pensar? Pensamos depois, ao sair do espaço. Talvez seja essa a ideia. Ainda que dependa de cada um, parece-me impossível ficar indiferente ao que assistimos. 

    A exposição foi inaugurada a 12 de janeiro de 2022 e vai estar em exibição durante os próximos três anos no Oceanário de Lisboa.

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"Por cultura entendo um conjunto de valores e crenças que formam o comportamento; padrões repetitivos de comportamento geram costumes que são repetidos por instituições, bem como por organizações sociais informais. (…)a cultura é uma construção coletiva que transcende preferências individuais, ao mesmo tempo em que influencia práticas das pessoas no seu âmbito…”


Manuel Castells (2003) A Galáxia Internet: reflexões sobre a Internet, negócios e a sociedade




Adivinhava-se que a globalização através dos novos média pudesse massificar a informação e os conteúdos, torná-la omnipresente e ultrapassar as fronteiras sociais que separam as classes, as fronteiras físicas dos estados-nação e até as mais vincadas crenças associadas a diferentes culturas e religiões. É também certo que os novos média contribuíram e contribuem de forma determinante para expandir a “rede capilar” de informação que se entranha  de forma viral por cada canto do planeta.  


Esperava-se então que a diversidade cultural ganhasse expressão e conseguisse no ciberespaço empoderar as mais variadas culturas, criando uma consciência colectiva que respeitasse as diferenças e especificidades de cada comunidade em qualquer parte do mundo. Na minha opinião, parte dessa expectativa foi amplamente alcançada. O trabalho em rede alargou infinitamente os horizontes da investigação, estimulou as mais diferentes áreas do conhecimento, desenvolveu ferramentas de difusão cultural, aproximou comunidades e alterou, de forma irreversível, a perspectiva com que o indivíduo vê e experiencia o que o rodeia. Os exemplos  são incontáveis e os benefícios mais que evidentes. Contudo, nesta perspectiva pessoal, foco-me num fenómeno que a globalização através dos média deixava igualmente antever mas com resultados imprevisíveis - a transformação do indivíduo e a compartimentação da identidade.


Hoje em dia, é inegável a preponderância que as redes sociais desempenham nas nossas vidas. É maioritariamente através delas que maior parte das pessoas vê o mundo, se relaciona com os outros e interage com diferentes realidades. É no ciberespaço, mais  do que no espaço físico,  que se desenvolvem a maioria das interacções que hoje realizamos. É no ciberespaço que encontramos respostas à grande parte das nossas necessidades, de forma imediata e amplamente validada. O ciberespaço, através da sua universalidade e multiplicidade,   torna-se o expoente máximo da “construção coletiva” de que fala Castells, promovendo e gerando comportamentos padronizados comuns a determinados grupos -  a cultura no ciberespaço . 



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    Esta ideia leva-me a reflectir sobre o facto de a cultura passar a cada segundo pelo ecrã do nosso telemóvel. Numa pequena fração temporal, a maioria da “cultura” que consumimos desliza para cima, "acenando-nos",  tentando desesperadamente prender a nossa atenção. O scroll down mata dezenas de inputs que nos chegam sem força para demover o nosso polegar. Paramos por instantes com a curiosidade de querer saber mais sobre o que nos interessa.  Títulos sugestivos e fotografias impactantes dão o mote para abrir essa porta que poucas vezes correspondem às expectativas. A pouco e pouco, aprofundamos a nossa sensibilidade para filtrar os conteúdos que nos interessam e, à força de muitos equívocos, jogamos pelo seguro: selecionamos as fontes do que consumimos e "afunilamos" os nossos interesses, normalmente situados entre o que amamos e odiamos. 


Se por um lado, a oposição entre o que gostamos e detestamos aprofundam as nossas convicções e vincam a nossa identidade, por outro, fecham-nos o ângulo com que observamos o que nos rodeia. Por força de uma seleção do que consumimos através dos novos média, tornamo-nos lentamente objetivas com focal de pequeno ângulo que fragmenta em partes a realidade e constrói uma “nova realidade” afecta ao que realmente nos interessa. Esta convergência tende a desconstruir a ideia de que a globalização é meramente unificadora numa lógica de fazer chegar “ tudo a todos”. Por outro lado, o acesso universal à informação criou uma consciência global do papel e espaço que cada um de nós ocupa na sociedade, em particular, dando um palco aqueles que, por força das fronteiras físicas, económicas ou culturais, até então não tinham tido oportunidade para se afirmar e agitar a suas bandeiras identitárias.  Através dos média , a cultura atravessa nos dias que correm, em passo acelerado, uma transformação global que paradoxalmente, com o objectivo de atenuar fronteiras , acaba por vincar outras que tendem a delimitar fortemente a ideologia de cada  um de nós. É neste choque entre a aproximação e polarização crescente que a transformação cultural atravessa um dos seus maiores desafios: reencontrar equilíbrio entre um ciberespaço tão democrático quanto anárquico.